outubro 10, 2003

NUNO GONÇALVES

A produção da escola portuguesa do renascimento está repleta de grandes obras, injustamente desvalorizadas, esquecidas nesses sarcófagos que são os museus nacionais ou, pior, em igrejas perdidas de fé e de clientes, geridas por padres ignorantes dos tesouros que têm entre mãos.

No ranking de popularidade dos pintores portugueses, Nuno Gonçalves talvez apareça em primeiro lugar, categoria "mortos e enterrados" mercê das exaltações patriotico-salazarentas às particularidades lusitanas dos Painéis da Capela de S. Vicente cujos ecos ainda hoje perduram e dos aparecimentos - mais ou menos esporádicos - em versão ilustração de capas de livros e de artigos de revistas.

No entanto, mais do que os "Painéis", o quadro que me enche de uma perturbação que vai muito para lá dos limites da razão é o "Ecce Homo" - essa figura a quem não nos é permitido ver o olhar, a quem é cortada a possibilidade de comunicar, de nos olhar. A perca da sua condição humana não lhe adveio das torturas a que foi submetido; nem a coroa de espinhos, nem as mãos atadas nem a fragilidade do corpo chegaram para o humilhar; nem penso, chegarão para nos impressionar, a nós receptáculos dessa transferência de sentimentos a quem a história já foi contada tantas vezes antes. O que verdadeiramente o aniquila é esse corte com o outro, essa mancha branca em forma de lençol que lhe cobre parcialmente o rosto. Quem é este homem que vem do desconhecido e se mantém desconhecido? Quem somos nós, algozes e espectadores passivos?

A pintura foi executada na segunda metade do século XV. A pintura italiana refulgia na sua miríade de descobridores artistas, na sua descoberta da natureza e do papel do homem nessa natureza, na descoberta do próprio homem. A pintura flamenga brilhava igualmente com a exploração da relação do homem com o seu ambiente urbano, espiritual. Em Portugal, país pequeno, pobre, atrasado, um homem ousava interrogar assim, muito antes do tempo. E esta marca, esta pergunta, esta perturbação, de actuais que ainda são, merecem muito mais o prime time do que as obscenas figuras que nos ocupam o tempo neste presente deplorável.

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