outubro 14, 2003

MONÓLOGO I

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Sabes, gosto de pensar que o Glenn Gould é um bocadinho de todos nós, de cada vez que o oiço tocar as Variações com aquele permanente trautear que é uma delícia dou comigo a imaginá-lo a sorrir trocista da porteira, ó senhor Glenn, toque essa coisa mais baixo que os vizinhos se andam a queixar, ó senhor Glenn tenha consideração pelos outros!, campainhas a tocar de protesto, um cabo de vassoura a bater furiosamente no tecto e o Gould majestático a tocar vezes sem fim as Variações, as variações das Variações enquanto as trauteia e mede o seu desempenho pelo murmurar da melodia, enquanto um sorriso cada vez maior lhe cresce a cara, completamente surdo aos justos e aflitos protestos das pobres criaturas que reclamam o seu silêncio. Para mim o Gould é sempre uma imagem que ficou de um documentário, uma sala com enormes portadas para um jardim a perder de vista, translúcidas cortinas que ondulam com uma leve brisa e nesse movimento revelam o exterior, a sala sem ninguém e a música das Variações, obsessiva, magnífica, omnipotente, vibrante, o centro de tudo, a razão de ser, nem princípio nem fim, porque apenas tudo.

E imagino-me assim, também eu a atravessar a vida, absorvido pelas minhas vozes, completamente alheio às palmadas na porta, aos gritos e chamadas de atenção, aos insistentes, indecorosos, inconvenientes pedidos de atenção, ajuda, socorro, às chamadas de atenção, às críticas e cumprimentos, aos alertas e felicitações, a todos aqueles ensaios de sociabilidade que me entediam ou frustram, cansam ou desmorecem, àquela infindável, incontornável procissão de contactos com o mundo.

Quando consigo ficar só com os meus murmúrios e perceber a maravilhosa polifonia que eles formam, quando me permito a misantropia que os liberta, quando finalmente enquadro a minha vivência com o rigor da sua harmonia, - oh, bem-vinda paz do meu espírito! -, finalmente me permito ser eu.

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