outubro 13, 2003

DEUS, O IRMÃO DO FILHO PRÓDIGO E A BARTOLI

O prodigioso trabalho de montagem sonora na cena da composição do "Requiem". A música que a cada passo nos surpreende e, sussurrante ou estrepitosa, nos cativa. A sedução da intriga e da sugestão de assassinato.

Tudo e muito mais faz de "Amadeus" um filme marcante mas, no entanto, o que nele mais me fez reflectir foi aquela sibilina interrogação de Salieri, "Se eu dediquei a minha vida a Deus, se sempre O respeitei e cumpridor me fiz das minhas obrigações, porque é que a recompensa que me era devida foi oferecida a um labrego apatetado que a todo o instante nega a sua condição divina?" Este sentimento de irmão do filho pródigo que todos nós teremos sentido num momento ou outro das nossas vidas e que se tornava a mola impulsionadora de toda a acção, parece um pouco despropositado quando ouvimos o mais recente CD da divina Cecilia, "La Bartoli" - "The Salieri Album".

Salieri não foi um compositor medíocre, apenas não foi um génio. A diferença entre ele e Mozart, apetece-me compará-la à existente entre Rafael e Miguel Ângelo: enquanto o primeiro percorreu (e muito bem para quem gosta) os caminhos que outros abriram, o segundo traçou novos caminhos. E ouvir este CD é percorrer aqueles caminhos bem feitos, bem traçados, formalmente correctos. Nada de muito recordável, não fora a intérprete. E a Bartoli transforma um bocejo barroco com as suas voltas, torneados e demais enfeites, num êxtase permanente que se mantém do princípio ao fim da audição.

Por uma vez, Deus concede a graça e permite que um anjo toque a obra do seu servo.

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