Nos meus passeios pela vizinhança, encontrei um post interessante no Blog de Esquerda sobre António Damásio, Rembrandt e A Aula de Anatomia do Doutor Tulp. Escrevi um comentário com alguma leveza, mas ficou cá dentro a fermentar o desejo de voltar ao quadro num post só para ele.
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Porque pomos títulos nas coisas? Par nos identificarmos com elas, para as identificarmos, para delas tomar posse? Ao nomear algo estamos, de alguma forma a chamá-lo nosso, a retirá-lo desse anónimo mundo que nos é desconhecido. Mesmo que nos afronte, incomode, agrida, criamos uma empatia com um nome. “A lição de Anatomia...” assim foi nomeada porque assim nos tranquiliza. Nada no instante que o pintor recria, nos fala de uma lição.
Fala-nos de um grupo de burgueses que, perfilados, ostentam o melhor perfil para o retrato que encomendaram. Um grupo heterogéneo, cujo elo de ligação é o espaço onde são retratados. Um grupo cuidadosamente ordenado a quem as próprias leis da física que curvam, omitindo sombras óbvias de modo a evitar deixar na penumbra partes dos rostos.
Fala-nos da terrível solidão da morte, da obliteração instantânea da condição humana que provoca: ninguém se interessa pelo cadáver, pelo homem que foi. Dois retratados traem no afastamento do corpo a distanciação que já sentem, o dissecador, esse Doutor Tulp que se permite manter a cabeça coberta, nem o olha, outros três presentes olham a mão do médico ou o braço dissecado, feito já objecto. Finalmente, as duas personagens mais afastadas apenas se permitem interromper o que tinham em mãos para posar para o pintor. Faça-se a experiência e substitua-se o corpo por uma mancha de luz – fica o quadro desequilibrado? Falta alguma coisa aos retratados?
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Se o autor se permite evocar com fidelidade o morto é porque, com isso, cria uma relação de empatia com o espectador seu contemporâneo (tu conheces este morto, tu sabes o quão importante foi eliminá-lo, ergo, tu sabes que estes homens que o esquartejam existem e são importantes, são o poder).
O centro do quadro é o triângulo formado pelas duas mãos do médico e pelo braço dissecado.Se atentarmos nas duas linhas que as cabeças formam, veremos que elas condicionam o olhar do espectador para essa direcção; a vertical criada entre a personagem que, ao fundo, interrompe a leitura, e a mesma mão, tem o mesmo objectivo.
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Esta acentuação é ainda dada pela instabilidade deste mesmo triângulo: apoiado num vértice, o seu desiquilíbrio cria uma dinâmica que reforça essa centralidade.
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