novembro 14, 2003

UM QUADRO

Todas as histórias têm um começo, um meio, um fim. Todas as obras de arte têm também uma história para contar, com um princípio, um meio, um fim, diferentes para cada espectador que se disponibilizar a escutar.

Nos meus passeios pela vizinhança, encontrei um post interessante no Blog de Esquerda sobre António Damásio, Rembrandt e A Aula de Anatomia do Doutor Tulp. Escrevi um comentário com alguma leveza, mas ficou cá dentro a fermentar o desejo de voltar ao quadro num post só para ele.


Porque pomos títulos nas coisas? Par nos identificarmos com elas, para as identificarmos, para delas tomar posse? Ao nomear algo estamos, de alguma forma a chamá-lo nosso, a retirá-lo desse anónimo mundo que nos é desconhecido. Mesmo que nos afronte, incomode, agrida, criamos uma empatia com um nome. “A lição de Anatomia...” assim foi nomeada porque assim nos tranquiliza. Nada no instante que o pintor recria, nos fala de uma lição.

Fala-nos de um grupo de burgueses que, perfilados, ostentam o melhor perfil para o retrato que encomendaram. Um grupo heterogéneo, cujo elo de ligação é o espaço onde são retratados. Um grupo cuidadosamente ordenado a quem as próprias leis da física que curvam, omitindo sombras óbvias de modo a evitar deixar na penumbra partes dos rostos.

Fala-nos da terrível solidão da morte, da obliteração instantânea da condição humana que provoca: ninguém se interessa pelo cadáver, pelo homem que foi. Dois retratados traem no afastamento do corpo a distanciação que já sentem, o dissecador, esse Doutor Tulp que se permite manter a cabeça coberta, nem o olha, outros três presentes olham a mão do médico ou o braço dissecado, feito já objecto. Finalmente, as duas personagens mais afastadas apenas se permitem interromper o que tinham em mãos para posar para o pintor. Faça-se a experiência e substitua-se o corpo por uma mancha de luz – fica o quadro desequilibrado? Falta alguma coisa aos retratados?


Se o autor se permite evocar com fidelidade o morto é porque, com isso, cria uma relação de empatia com o espectador seu contemporâneo (tu conheces este morto, tu sabes o quão importante foi eliminá-lo, ergo, tu sabes que estes homens que o esquartejam existem e são importantes, são o poder).

O centro do quadro é o triângulo formado pelas duas mãos do médico e pelo braço dissecado.Se atentarmos nas duas linhas que as cabeças formam, veremos que elas condicionam o olhar do espectador para essa direcção; a vertical criada entre a personagem que, ao fundo, interrompe a leitura, e a mesma mão, tem o mesmo objectivo.


Esta acentuação é ainda dada pela instabilidade deste mesmo triângulo: apoiado num vértice, o seu desiquilíbrio cria uma dinâmica que reforça essa centralidade.

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