novembro 15, 2003

ALTORRES

Está na edição on-line do Público. Como os textos costumam durar por lá pouco tempo, resolvi transcrevê-lo "ipsis verbis". Agradeço contacto do jornal se os copyright mo impedir de o fazer.

Carta Aberta Aos Lisboetas a Propósito das "Torres do Siza" para Alcântara
Por JORGE VILHENA MESQUITA E ANA PAULA GAGO
Quinta-feira, 13 de Novembro de 2003

Escreve o arquitecto italiano Vittorio Gregotti na sua obra "Nas Pisadas de Palladio - Razões e Prática da Arquitectura" que "Temos [os arquitectos] (...) enormes responsabilidades colectivas, o nosso trabalho perdura no tempo tanto nos seus êxitos como nos seus erros, e estes condicionam fortemente o nosso ambiente."

Servirá ela de epígrafe à reflexão que propomos sobre o projecto da autoria do arquitecto Siza Vieira para o terreno de 4,5 hectares, actualmente ocupado sobretudo por equipamentos industriais desafectados na zona de Alcântara, muito próximo da ponte sobre o Tejo, e destinado a um empreendimento imobiliário com uma área de construção anunciada de 104 mil m2, constituído por três torres de 35 andares e 105 metros de altura e seis edifícios de quatro andares, para habitação e serviços.

Não se pode ficar indiferente ao impacto que um tal complexo imobiliário não deixaria de ter numa zona crítica da cidade que nunca recuperou dos efeitos que nela teve no passado a construção da ponte, semi-enclausurada entre vias e nós rodoviários e ferroviários, e onde qualquer intervenção deveria obedecer aos princípios do recozimento e clarificação possíveis de uma malha urbana esgarçada. Nela aconselhar-se-ia exactamente o oposto do que para lá se propõe: uma brutal densificação, aproveitando a modificação do uso do solo, de industrial a habitacional e de serviços. O súbito afluxo de milhares de pessoas e de milhares de automóveis que este projecto implicaria só poderia agravar duradoiramente a situação actual.

A arquitectura não é criação divina: não nasce do nada por obra e graça de um qualquer arquitecto-Deus. A sua ligação ao sítio, ao lugar pré-existentes - que são a sua circunstância - impõe-lhe, ainda nas palavras de Gregotti, "a sua primeira responsabilidade". Ora no projecto de Siza, não é o sítio, o lugar, que parecem pré-existir, é o projecto que, na sua arrogância, se lhes impõe como se nada existisse em volta, num total desprezo pelo quadro envolvente, ultrapassando inclusive a altura do tabuleiro da ponte. Estamos nos antípodas do "orgulho da modéstia" que Gregotti sabiamente preconiza como atitude do arquitecto na citada obra.

Este projecto tanto poderia surgir ali como noutro sítio qualquer. Na sua abstracção, o que importa não é a melhor integração naquele lugar, nem a articulação com a zona ribeirinha, nem um qualquer aproveitamento cenográfico do rio: nele o que conta é como atafulhar melhor todo aquele volume de construção pré-definido nos 4,5 hectares de que dispõe. E como à escala urbana pré-existente isso é impossível, projecta-os em altura. Esta é a sua primordial verdade. Convém não nos enganarmos: estamos aqui em presença de uma poderosíssima operação de especulação imobiliária. É nessa lógica que ele deve ser visto, mesmo se aparecerá sempre alguém a justificar esteticamente os objectos que a especulação produz: sempre alguém chamará "belo" ao que o subjuga.

A memória dos homens é curta e manipulá-los é fácil. Mas quem ainda não tiver esquecido de todo as imagens de homens e mulheres despenhando-se das Torres Gémeas no 11 de Setembro, terá percebido quanto tais espaços são desumanos, quanto o homem neles se vê reduzido à sua insignificância viva - o que não surpreende, aliás: eles não são construídos para o homem. Desumanidade, esterilidade, desterritorialidade, eis o que eles criam. Quem os concebe aposta, de forma mais ou menos consciente, na rotura, na fragmentação da cidade e na destruição da memória que as acompanha, porque quanto menos homogénea e legível nessa homogeneidade a cidade for, melhor poderão prover aos seus interesses.

Este projecto poderia ser acolhido com interesse em certas cidades da América do Norte ou do Sul - mas alguém imagina que pudesse "passar" em cidades como Roma, Praga ou Estocolmo?

Através dele podemos ver a separação das águas entre dois "modelos" de cidade.

Poderíamos chamar-lhes as cidades "do tempo lento" e as cidades do "tempo breve". No primeiro, predominantemente europeu, encontramos aquelas cidades que, fruto de um lento processo que só o tempo e a duração permitem, são das mais belas obras colectivas do homem, numa coerência arquitectónica que é o resultado do sábio doseamento de memória e de variação, e onde a preservação do património legado é um valor interiorizado e praticado - o que se traduz em taxas de recuperação do património construído da ordem dos 40 ou 50 por cento, ou seja, quase 10 vezes (!!!) superiores às das cidades portuguesas. O segundo, de matriz norte-americana, reduz a cidade - ou melhor, o espaço que, por antonomásia, tomamos como sendo o da "cidade americana" e cujo símbolo seria Manhattan - a um teatro de jogos e interesses económico-financeiros no qual o território, o espaço, são um bem a apropriar e a explorar. É este que, no seu pior, tem vingado na América Latina, no terceiro mundo, e em todo o lado onde o dinheiro é lei, os mecanismos de controlo cívico e democrático são fracos ou inexistentes, a memória recua e a desterritorialização avança.

Não nos iludamos: é este "modelo" a não seguir que, em detrimento do outro que quereremos para as nossas cidades, está subjacente ao projecto das torres para Alcântara.

Convém recordar que este projecto consubstanciaria uma violação do PDM que, ao que sabemos, continua em vigor, e que interdita cérceas superiores a 25 metros. Já foi arremessado o argumento de que, de qualquer maneira, este mesmo PDM já foi antes impunemente violado, ou que se prefigura a sua revisão. Trata-se de argumentos inaceitáveis à luz da ética e do direito. O primado da lei é mesmo um dos fundamentos do Estado de direito e a sua violação deve ser sancionada .

Que um arquitecto com o renome de Siza e aureolado de um estatuto de "vaca sagrada" da arquitectura portuguesa projecte - e assim caucione - um tal complexo imobiliário em violação do PDM em vigor parece-nos reprovável, mesmo no pressuposto de uma sua hipotética revisão: pela violentação que o projecto configura em si e pela pressão que, mercê da autoridade de que Siza goza, vem acrescentar à alteração do PDM numa direcção certamente indesejada pelos lisboetas. E que um presidente da câmara de Lisboa apadrinhe tal projecto parece-nos, no mínimo, ética e politicamente condenável. Sirva isso ao menos para que se perceba de vez o que esconde a sua ânsia em rever o PDM expeditamente, a trouxe-mouxe.

Porém, onde houver liberdade de espírito e de pensamento não há lugar para vacas sagradas. As obras que produzam valem ou não valem por si próprias, como, à evidência, todas as obras humanas. E estão sujeitas ao escrutínio e apreciação daqueles a quem em princípio se dirigiriam.

Por todas as razões expostas, o projecto das Torres de Alcântara não serve os lisboetas nem serve Lisboa. É um projecto de especulação imobiliária pura e dura, entregue a um arquitecto de renome para forçar a sua passagem. Só isto. Serve os seus promotores, com ele ganhando também o arquitecto. A realizar-se, o seu impacto negativo na cidade perpetuar-se-ia no tempo.

Os signatários, não vivendo em Lisboa, sentem-na como sua. Mas são sobretudo os que aí vivem que podem agir para que a palavra lhes seja devolvida neste processo e para que essa palavra pese decisivamente no seu desfecho. Ao fazê-lo, estarão a usar do direito que têm a não verem a sua cidade irremediavelmente maltratada e desfigurada. É tempo de dizer não às Torres de Alcântara.

Tradutor e arquitecta
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