novembro 21, 2003

O MISTÉRIO DO CLAUSTRO DAS LARANJAS

Filha de um deus menor em Portugal, à pintura portuguesa do século XV está reservado um lugar cheio de brumas, onde cada resposta teima em aparecer do saco de mistérios onde jaz.

É e tem sido assim com Nuno Gonçalves - e que maravilhoso blog deveria ser, aquele que só tratasse dos Paineis de S. Vicente de Fora! -, foi e ainda é, em parte, com João Gonçalves.

Desculpa... disseste - quem?

Se hoje em dia, já apenas os portugueses de gerações mais vetustas, pré-reformas curriculares, juntam o nome do primeiro à sua obra (e que obra...!), de João Gonçalves apenas guardam o nome a meia dúzia de eruditos que oficiam universitária ou museologicamente na área próxima e mais alguns apaixonados que, por acaso, ou por ligação efémera à pintura renascentista portuguesa, deram atenção.

Era uma vez... uns frescos de autor não comprovado, existentes no claustro das Laranjas da Badia de Florença e que, num livro saído em 1953, um prestigiado historiador da arte italiano, Roberto Longhi, classificava como “Il piú importante che resti a Firenze, del decenio sequente alla morte di Masaccio”. Ora sendo Masaccio uma das três figuras geralmente consideradas como as mais marcantes do início do Renascimento (sendo as outras duas Brunelleschi e Donatello), porquê este silêncio em torno do autor das obras "mais importantes do decénio seguinte"? A resposta, sabe-se depois das conclusões a que chega Cruz Teixeira na sua tese de doutoramento, será porque são obra de uma mão não-italiana e, como tal, estrangeira ao mito do Renascimento criado totalmente por artistas locais.

Obra de uma dedução quase sherlockiana, a investigação e comprovação da autoria portuguesa dos frescos parte da análise dos documentos publicados em 1963 por Eduardo Borges Nunes no livro dedicado a "Dom Frei Gomes" (outra figura notável, abade dessa mesma Badia, convidado para pôr a casa em ordem), cruzando-os com a leitura das formas tão cara à actividade de um Historiador da Arte. O relato é empolgante mas poderá parecer árido nestas páginas. A conclusão é, no entanto, cristalina: o autor de tão importante obra não poderá ser outro que não João Gonçalves.

O mistério, contudo, permanece e permanecerá para sempre ou até que, obscuros documentos sejam arrancados do seu pó de séculos para voltarem a ser lidos à luz do presente. Quem foi João Gonçalves? Onde foi feita a sua formação? Que obras pintou para além dos frescos da Badia? Estarão, como é bastante provável, todas perdidas?

Fica a obra. E para além do seu lugar na História da Pintura Italiana, fica o seu carácter pioneiro e antecessor da pintura da escola portuguesa do renascimento: uma maneira muito particular de continuar a citar o quotidiano no meio do tema mais formalmente religioso; uma graça, uma ternura que vai muito para além da "seriedade" do tema; uma construção que eu arrisco chamar quase cinematográfica: pequenos detalhes, pequenos comentários que são introduzidos aqui e ali e que vão dinamizando a nossa leitura da obra, lhe vão alterando o ritmo, lhe vão quebrando a rigidez. O frade que, risonho e cúmplice, nos sorri; o homem que levanta os braços num sinal de impotência perante a lança partida; o pano que se esqueceu pendurado no meio da ceia. A lembrar, por exemplo, o S. José de Gregório Lopes que, sorridente, cuida das brasas do fogareiro, tão absorto que se esquece da importância histórica de ter ao seu lado o Salvador dos Homens...

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