(post longo e eventualmente desmobilizador para quem se desinteressa destas coisas...)
"Que reabilitação se pretende para o conjunto dos bairros históricos de Lisboa, mais concretamente para Alfama? Das opiniões escritas, feitas letra de lei, parece-me evidente presidir a toda a oficial filosofia de reabilitação um conceito de respeito pela matriz histórica do existente, não só no edificado como nas relações sociais de habitação e vivência do bairro, que se cristaliza na vontade de refazer mimeticamente, sejam os métodos construtivos e arquitectónicos, sejam os volumes, os espaços e relações interiores das habitações, sejam ainda os direitos adquiridos de moradores e ocupantes.
Ora tal orientação, louvável numa base de obediência ao que as diversas disciplinas envolvidas defendem como imprescindível – a memória histórica, a verdade arquitectónica, a originalidade sociológica -, torna-se praticamente impossível de completar, seja quando se sobrepõem as diversas visões entre si, seja quando se confrontam os limites do existente com a regulamentação nacional actualmente em vigor, seja ela no domínio da qualidade mínima do espaço habitacional (nomeadamente o RGEU, nomeadamente as áreas mínimas permitidas), na segurança das estruturas (Eurocódigos, Regulamento de Segurança de Acções, resistência dos edifícios a solicitações sísmicas), nos padrões actuais de conforto e segurança dos edifícios de habitação e não só (regulamentos respeitantes às diversas redes de infra-estruturas, RCCTE, Regulamento do Ruído), para mencionar algumas das condicionantes com que actualmente o Estado confronta e defende os seus cidadãos nesta área, no intuito louvável de capacitar o parque edificado nacional com condições que reflictam o progresso dos tempos, em contraponto aos tempos passados onde a norma na arquitectura civil era a de edifícios com condições de habitabilidade que negavam aos mesmos característica primordial de abrigo que os deveria caracterizar.
Ainda que, após tudo o que foi escrito, a prudência pareça aconselhar que a solução para cada caso provenha essencialmente das características quase únicas que esse mesmo caso apresenta, não convidando a generalizações sempre perigosas, parece-me no entanto essencial a existência de uma filosofia de base que não só permita identificar e balizar a vontade “política” que a CML põe por detrás da intervenção como, e porventura mais importante, constitua o ponto de partida obrigatório para qualquer programa de reabilitação e base de aceitação (ou abandono) do projectista responsável pelo mesmo. Ora a defesa pura e simples da manutenção do existente parece-nos (como demonstrado pelos exemplos dados), para além de formalmente ilegal (ainda que, formalmente, não exista regulamentação específica para intervenções em edifícios antigos), inconsequente face à relação custo/benefício obtida (basta atentar no resultado visível da maior parte das intervenções RECRIA, com deteriorações muito inferiores aos 8 anos minimamente aceitáveis).
Deste modo, se é aceite que os tempos da luz da vela, da água potável carregada em bilhas escada acima, do “lá vai disto!” janela abaixo e do fogareiro de carvão - contemporâneos da arquitectura que se quer preservar -, já acabaram e que é preciso dotar os edifícios de redes de infra-estruturas fiáveis e seguras (criando-as quando inexistentes, reformulando-as de acordo com a legislação actual nos restantes casos), introduzindo assim acrescentos em relação à “pureza” original da construção, por maioria de razão se deverá aceitar que o tempo das estruturas frágeis - construídas na maior parte das vezes pela mão-de-obra sobrante da reconstrução pós-terramoto das zonas nobres da cidade (e, como tal, com poucas habilitações ou qualidades profissionais) ou, posteriormente, para um destinatário com poucas expectativas ou recursos financeiros -, terminou, pelo que é necessário dotar o edifício de uma estrutura que resista tanto às solicitações diárias de cargas estáticas, como tenha um desempenho de segurança mínimo (isto é, que permita uma evacuação rápida segura dos seus ocupantes) face às solicitações dinâmicas. Ora tal estrutura é incompatível com os métodos utilizados na construção original – materiais de má qualidade, argamassas pobres, uma organização estrutural que resiste pouco e mal – pelo que está fora de questão uma recuperação segundo uma mesma filosofia. Infelizmente para o tempo presente a racionalidade pombalina torna-se economicamente desaconselhável (falta de mão-de-obra especializada, materiais caros), pelo que se torna óbvio que, também a nível estrutural se deverá optar pela utilização de técnicas contemporâneas devendo, aí sim, a opção por uma ou por outra ser função das condicionantes de cada caso.
Quanto à manutenção das condições interiores de cada fogo, o problema é semelhante: poderá um projectista, após a defesa da criação de infra-estruturas que garantem um conforto mínimo de utilização do espaço, oferecer ao habitante um espaço ele próprio sem condições? Isto é, valerá a pena fornecer águas e esgotos a uma casa-de-banho onde os movimentos são tolhidos pela exiguidade do espaço? Fornecer gás e electricidade a uma cozinha onde a existência de um fogão e um frigorífico torna extremamente difícil, pelas suas reduzidas dimensões a confecção de qualquer refeição? Não negamos o facto de, uma vez que estas condições já existirem antes, não as estarmos a criar, antes a prolongá-las. Mas valerá a pena o esforço financeiro para tão magro resultado, principalmente se tivermos em conta que, como referido, a intervenção é, na maior parte das vezes, em casa alheia? Esta é, no entanto, uma questão que, mais do que técnica é eminentemente política, no seu sentido mais abrangente, ou seja, é uma questão da política de intervenção camarária dos bairros históricos que ultrapassa a vontade e o desejo do projectista. Enquanto no que respeita às questões de segurança compete ao projectista, não só comentar como opor-se à execução de trabalhos que não a verificam, em relação a questões de conforto e economia apenas se sente no direito de as enunciar e questionar, pelo que, a última palavra caberá sempre à CML.
De cedência em cedência (ou, o que seria pior, de ilegalidade em ilegalidade) se poderia assim continuar a escrever a história da reabilitação dos bairros históricos, não fora o caso pioneiro dos Projectos Integrados onde, ao se tomar consciência de que a reabilitação do edificado teria de ir abandonando a casuística que a urgência sempre comporta (e, nos casos extremos de Alfama e da Mouraria, será mais correcto falar de extrema ou desesperada urgência) e passar a encarar intervenções tendo como base mínima, não o edifício, antes o quarteirão, se deu um passo decisivo para não só resolver problemas estruturais que extravasavam a unidade construída, como permitiu economias de escala na intervenção e evitou sobreposições ou incongruências no projectado.
Neste cenário de real progresso de métodos e meios resta, no entanto, uma perturbação pertinente que se prende com o facto de se estar a intervir em quarteirões cuja propriedade, para além de não pertencer, na sua maioria à CML, não é homogénea – como projectar alterações que, ditadas por questões de segurança, serão significativas em termos de áreas úteis, por exemplo, em fogos recentemente reabilitados pelo proprietário ou inquilino? Como justificar economicamente o investimento profundo num edifício que, aparentemente é, em termos de risco, de Grau “C”, face às carências registadas em edifícios muito próximos, com um visível maior estado de degradação? (...)"
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