maio 17, 2004

O ARROZ PORTUGUÊS


Não há prato mais evocativamente português que um arroz “malandrinho”, penso quando contemplo um, esparramado numa cadeira de ferro de esplanada de restaurante do Bairro Alto. (As limitações de trânsito que o presidente da câmara impôs permitiram este avançar para o exterior – carros continuam a passar ocasionais. O susto é maior por sentir uma bocarra ruidosa a cuspir fumos ao nosso lado, mas os silêncios também aumentaram.) Está um azul de Lisboa no céu e as sombras que cobrem quase toda a rua (ruas estreitas com prédios suficientemente altos para as tapar) são um consolo.
O arroz. Tomate e pimentos. Combinam a perfeição de um contraste simultâneo com a exaltação do seu gosto. Cheirar um arroz destes é fazer como Jacinto: deixar os olhos desfocarem-se de um princípio de lágrimas e sentir um absurdo orgulho em ser português. Trincar uma tira de pimento é reclamar para si a gesta anónima dos hortelões que, durante séculos, abasteceram a cidade, é sentir a premência da terra onde cresceram, é fazer parte de uma primavera sempre renovada. Carnudo como o corpo por quem se anseia, excitante como a pele que se procura, enebriante como o odor de quem se ama.
Um arroz “malandrinho” é um prato triplo: vale por si só, é eficaz e complementar contraponto ao elemento principal da refeição – peixe de preferência, em qualquer das suas múltiplas variações fritas, e é o molho onde ensopar o pão trigueiro e estaladiço, obrigatoriamente presente em toda a mesa nacional.
“Malandrinhos” somos todos nós: com manha e com substância, discretos e eficazes, saborosos e laterais. Muito e aparentemente pouco, pouco ainda que aparentemente muito.

Sem comentários: