março 10, 2004

DESENCONTROS

Há dias, contaram-me uma história que me fez relembrar a discussão mantida há uns meses com o Pedro Jordão (a propósito: boa-sorte com o novo trabalho!) acerca da compartimentação ou comunhão de trabalho entre arquitectos e engenheiros.

A história é, mais ou menos, assim: um arquitecto com alguns anos de tarimba e bons clientes em carteira projectou um grande edifício de habitação para Lisboa. Cópias feitas, processo de licenciamento entregue, aprovação camarária uns meses depois e toca a ligar aos engenheiros para fazerem os respectivos projectos de especialidades. Três dias antes do dead-line acordado com o cliente, o pânico: "Então e a verificação acústica? Onde é que está? Quem a faz?". Telefonemas desesperados a colegas, onde descobrir um especialista que a possa fazer em tão curto espaço de tempo, lá aparece um que se disponibiliza a tal. Dois dias depois, telefonema com más notícias: é preciso fazer alterações ao projecto de arquitectura que o cujo, ainda que arquitectonicamente bem pensado, "mete som a mais" entre vizinhos, partes comuns e privadas, exteriores e interiores. "Agora?", resposta a roçar o tom de pânico do projectista, "com o projecto aprovado, o orçamento feito e o cliente satisfeito? Nem pensar! O que é que vão pensar desta casa? Desembrulhe-se!"

O engenheiro desembrulhou-se. Fez a verificação baseado na solução correcta e escreveu, preto no branco, que para a mesma ser factual, teriam de ser efectuadas as correcções tal e tal ao projecto de arquitectura e empregues as respectivas soluções em obra.

As especialidades foram aprovadas uns tempos depois sem comentários. O prédio está a ser feito sem, que eu saiba, as alterações sugeridas e, mesmo com a crise, os andares - de "luxo"! - vendem-se muito razoavelmente. Parece que o arquitecto não gostou muito da atitude do engenheiro - imiscuir-se assim numa área que é da competência do arquitecto! - e resolveu esquecer-se do pagamento da respectiva factura durante uns tempos, após protestar pelo "elevado" valor da mesma.

Eu achei tudo isto tão engraçado que resolvi partilhá-lo por aqui. Na sua pequenez, revela como o país funciona neste campo: existem leis e regulamentos que se esgotam na formalidade da sua aprovação - não são para ser levados a sério. Existem arquitectos que funcionam a leste da técnica: a verificação acústica é o carro-vassoura que vem no fim a limpar os estiradores quando ela, a par da verificação térmica deveria constituir um instrumento fundamental durante a execução do projecto, designadamente para aferir a validade das opções que se pretendem adoptar. Finalmente, existe tanto gato a ser vendido como lebre que, se houvesse uma sindicância a tudo o que foi construído desde o início dos anos 80 (quando se começaram a publicar os diveros regulamentos em vigor) quase tudo teria de ser reconstruído.

É por estas e muitas outras que eu continuo a defender que um arquitecto, para ser um bom projectista, tem de ter uma consciência muito forte das soluções técnicas (estruturais, infraestruturais, térmicas, acústicas) possíveis. É óbvio que não precisará de dimensionar varões ou cabos eléctricos, condutas ou colectores. Mas é bom que saiba discutir quase mano a mano com cada especialista se não quer ficar com a cara à banda quando lhe fazem "desfeitas" como a contada aqui. É claro que pode sempre assobiar para o lado e dizer que a culpa não é dele. Ou fingir que não é nada e deixar andar. Mas isso é uma atitude poucochinha, não é?

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