COPENHAGA, INVERNO
DIA 1
O AEROPORTO
É perto da cidade, é novo, é enorme – muito mais do que seria de esperar num país com poucos habitantes e de alguma forma periférico em relação aos centros turísticos mais populares da Europa.
É de uma arquitectura que, à falta de adjectivo mais técnico, me apetece chamar “clean”, uma espécie de modernismo nórdico, de linhas muito sóbrias, muito bonitas, muito lineares, algo como a B&O aplicada aos edifícios.
Espanta-me, mais do que o silêncio, a ordeira calma do lugar: os monitores para auto check-in, as pessoas que vão partir e as que chegam, as filas para comprar o bilhete de comboio – tranquilas! -, a eficácia do inglês dos funcionários, as linhas de comboio que passam sob a gare, à distância de uma escada rolante.
Espanta-me ainda a inteligência da disposição das lojas: no caminho de quem chega e de que parte, muitas, cheias do que é dinamarquês – longe, muito longe do que se faz em Portugal.
STROGET
Anunciada como a rua pedestre mais longa da Europa, a Stroget (que é um nome comum a quatro ruas que se encadeiam) não apresenta muitas diferenças em relação à típica rua para consumo: uma excepção, os edredons magníficos da Ofelia, que vontade de comprar muitos e levar para casa.
A NOITE
... no Inverno, acontece de dia, nestas latitudes impróprias para consumo meridional. É estranho dizer “boa-noite” às quatro da tarde como ilógico seria dizer “boa-tarde” com esta escuridão. O Governo baixa o preço dos cigarros e das bebidas alcoólicas no Inverno. Para diminuir a depressão. (O que é mais uma medida demonstrativa da humanidade do poder por estas bandas).
DIA 2
Neblina e nada de neve. Frio, frio seco e diferente.
As ruas neste centro da cidade prolongam a calma sentida no aeroporto. Há passeios com pouca gente, esparsos carros, bicicletas, muitas bicicletas. Nesta luz fria, o vermelho das caixas de correio brilha como néon.
NYHAVN
Do pouco se faz muito. Uma frente de canal sem saída com todas as casas meticulosamente recuperadas, com um restaurante ou bar no piso térreo de cada uma, cores envolventes, a atracção que os portos sempre exercem no espírito nómada de todos os europeus ribeirinhos e eis mais um ponto de passagem necessária.
Nyhavn, new haven, novo porto.
DA TRANSPARÊNCIA DOS CANAIS
Impressiona-me a claridade das águas dos canais. “Cristalinas” é a caracterização óbvia. Parecem despejadas de milhares de garrafas de água mineral. Desporto pessoal: tentar descobrir o maior número de bicicletas nelas depositadas: 3 é o recorde. Estranha incongruência.
ROSENBORG
Não sei se é um castelo de fadas ou uma mansão de terror, a arquitectura sugere os dois. Renascença flamenga adaptada aos gostos de um rei dinamarquês do princípio do século XVII, adapta-se bem aos contos de Anderson, simultaneamente encantatórios e assustadores.
Na neblina de fim da manhã, na solidão dos jardins no Inverno, as suas torres assimétricas sugerem gritos emudecidos, respostas talvez às preces mudas das árvores descarnadas de folhas.
Belas árvores, nodosas, prenhas da vida que irromperá na Primavera.
O jardim das rosas morreu. Anuncia-o um pedido de desculpas dos responsáveis: um fungo destruiu os buxos, optando-se por tudo refazer. Por agora, é um espaço fechado por arbustos, um labirinto sem desafios, onde no pavimento se marca a memória dos talhões.
CARL-HENNING PEDERSON
O acaso brinda-me sempre com imprevistas emoções. No Statens Museum for Kunst, um exposição retrospectiva de Pederson – que não conhecia. Que deslumbramento! Integrante, nos anos 50, de uma das mais motivantes propostas da arte europeia do pós-guerra – o grupo COBRA -, Pederson construiu (e ainda constrói: continua activo nos seus noventa anos) uma aventura pictórica que me surpreendeu e cativou.
Ritmos, cores, emoções – sorrisos, gritos, enternecimentos, solidariedades -, e uma extrema beleza.
Às frequentes interrogações que tenho perante a arte contemporânea - esta obra, aquele artista : funcionam ,são fraudes? – respondem actos como os de Pederson. Sim, sei distinguir de alguma forma, em pequena escala, o trigo de algum joio. Sim, o que sinto é diferente. Sim, mesmo a arte contemporânea – a Arte, não o que me dizem que é arte -, sabe fazer-se escutar neste meio baralhado habitante de um planeta único.
DA CARNE COMO ALIMENTO DO ESPÍRITO
DIA 3
MALMO, SUÉCIA
É como se dissesse, “Estamos em Lisboa, vamos até Alcochete pela ponte Vasco da Gama”.
Dois coelhos de uma vez só. Com a ligação de Oresund, os dinamarqueses recriam a unidade da região existente no passado (Malmo foi dinamarquesa durante 300 anos) e captam novos visitantes, novo tráfego para o aeroporto (claramente é mais fácil aos suecos viajar via Copenhaga do que via Estocolmo) mais trocas comerciais. Clever boys, pequeninos mas muito bons no que fazem.
SIGHTSEEING
Aprouvera a cada cidade portuguesa um conjunto como o existente no antigo castelo que agrega um museu de história natural, um museu histórico e um museu de arte!
Dito isto, acrescento: não vale a pena o desvio. É bom para os que estão, forma as criancinhas, incute-lhes o gosto da descoberta, estimula-as a querer ver mais. E pronto.
Para os forasteiros, a diferença faz-se na praça central – Stortorget - com os seus exemplos de arquitectura renascentista holandesa (século XVI) e Lilla Torg – uma pequena praça próxima, com edifícios de estrutura de madeira à vista construídos entre os séculos XVI e XVIII. Infelizmente, o mercado que aqui existiu durante séculos foi afastado para espaços mais higiénicos. É nos mercados que me encontro com o espírito dos locais.
BICICLANDO
Cidades do Norte da Europa e geografias planas dão origem a este culto pela bicicleta que se traduz em quilómetros de vias próprias espraiadas por todo o lado e no requinte de semáforos exclusivos. Ora pudesse Lisboa ser mais aplanada e os seus responsáveis mais aplainados...
DIVERSÕES
Em dinamarquês, “Feira Popular” diz-se “Tivoli”. Apesar das referências encomiásticas que encontrei espalhadas por tudo quanto era guia, oficial ou comercial, achei-o uma versão nórdica do portuguesinho Passeio dos Tristes. Muita família, muita criança, muitas atracçõezinhas (fechadas a maioria, ainda por cima, por culpa do frio, do Inverno, da escuridão, whatever), muito dinheiro para pagar cada coisa.
Com o pragmatismo próprio do país, os parques americanos são muito mais eficazes: paga-se tudo à entrada e, lá dentro, quem quiser andar anda, quem não quiser, andasse. Por aqui, 9 euros para entrar, 3 euros para umas coisas, 6 euros para as mais obviamente desejadas.
Desejável para os habitantes dos trópicos europeus, talvez só o laguinho gelado, com hipótese de patinagem: por 10 euros, give or take, um par de patins e um muito maior número de bate-cus, durante uma hora.
DIA 4
MAIS BICICLANDO
Desculpem lá, mas qualidade de vida é isto: duas vias para bicicletas, uma para ir em frente, outra para virar à direita. Por causa das prolongadas filas...
INDÚSTRIA PESADA
Até as fábricas são poéticas nesta placidez azul de céu e canal. As chaminés e o fumo delas saído – juro -, pareciam apenas mais umas quantas verticais e horizontais de composição do quadro. Tipo os suiços a lavarem o chicote na orgia do Asterix na Helvecia. Aposto que estão vários dinamarqueses no interior da chaminé a lavar o fumo, para ele poder sair sem fazer mal às criancinhas.
Se não dá mesmo vontade de vir a correr montar uma Tate Modern Modern neste edifício.
Ainda por cima tem a biblioteca do outro lado.
MASTER ARCHITECTS, AN OPINION PLEASE!
Penso que o LAC, quando fala da arquitectura- espectáculo, se referirá a edifícios deste tipo. Eu também. Gosto dos interiores, gosto da ruptura com os tons da cidade, gosto da pureza quase radical dos volumes, gosto da tecnologia que lhe está associada (meu caro Pedro, aqui, arquitectos e engenheiros trabalharam de lapiseira dada).
E acho que a ligação com o edifício antigo também resulta muito bem. Esta frente de rio é tão bonita como a de Lisboa, com duas vantagens: menor largura, o que possibilita uma relação mais estreita entre as duas margens; uma água transparente; dinheiro, muito dinheiro. Já são três.
NEVE
Só vi esta.
DIA 5
Esta Glyptotek vale principalmente pela sua colecção escultórica, ainda algumas das obras francesas do século XIX mereçam, por si só, a deslocação.
O maravilhoso da vida neste cruzamento de ritmos. A extraordinária perfeição técnica, aliada à atenta observação do real.
Da escultura romana, a anos luz da sua antecessora grega, para além das inúmeras cópias que, se outro mérito não tivessem, seriam sempre importantes como referência do original perdido, retenho a perfeição destes rostos, a sua extraordinária humanidade. Imperadores ou cidadãos, deuses ou mortais, nestas máscaras reteve o artista toda a vida do seu tempo. A sua matriz existiu, sentiu, amou, sofreu, preocupou-se com eventos que soam a ninharias à nossa análise histórica mas que, concerteza, são tão importantes quanto as importantes ninharias que nos preocupam hoje.
Encantaram-me mais as possibilidades gráficas da escrita e dos registos egípcios do que confabulações teóricas mais ou menos acertadas.
Nasce-se escravo?, escreveu o escultor na base deste busto. Duplamente escravo, de pele negra e mulher. A obra é novecentista, mas a pergunta continua no presente.