setembro 24, 2004

COISA FEIA, A INVEJA

Começa a insinuar-se reptilmente nesta sociedade, destilado pelas insinuações e meias-verdades que interessam ao populismo político de que tanto direita como esquerda se servem em profusão nos tempos que correm, um olhar de ressentimento perante o "outro" que tem mais recursos ou melhor vida.
Há muito da teoria maniqueista que inspirou palavras de ordem como a célebre e imortal "os ricos que paguem a crise!" nos discursos do Governo, especialmente no social-cristão Bagão Félix. Palavras aqui e ali, propagadas por uma comunicação social ávida de antagonismos, por políticos ambicionando os seus quinze minutos de fama, por comentadores generalizantes e por uma esquerda ávida de reerguer bandeiras antigas.
Não aparecendo por acaso, temas como as taxas diferenciadas para a saúde ou para os transportes públicos ou, ainda mais actuais, comparações entre a eficácia das escolas pagas e o encerramento das públicas, consolidam a impressão na classe tola (que é quase toda a sociedade portuguesa) da existência de uma classe priveligiada - "os outros" - que vive à sua conta, quer através de expedientes trapaceiros que iludam o cumprimento das suas responsabilidades (a fuga ao fisco, por exemplo), quer através da exploração, em proveito próprio, das escapatórias da lei (como é o caso do alongamento dos processos judiciais providenciado por advogados experientes pagos a peso de ouro). Desta constatação à identificação errada dos personagens através do que é visível e não do que é real vai um pequeno passo que já começou a ser dado e que não tarda muito a transformar-se num trambulhão social de consequências nefastas.
Dou um exemplo: tornou-se habitual apontar os "profissionais liberais" como os mais importantes actores da crónica fuga ao fisco que se vive neste país. Profissionais cuja actividade os inibe de emitir recibo e como tal serem taxados em sede de IVA e IRS. A associação é imediata: médicos, advogados, engenheiros, economistas ou arquitectos. Se considerarmos que as despesas médicas são dedutíveis e que a maior parte dos clientes dos restantes são empresas - as quais necessitam de recibos para justificar gastos - verificamos que a maior parte destes profissionais declara todos os seus ganhos. Quanto às deduções, serão a contrapartida natural a quem tem uma actividade de risco - hoje há trabalho, amanhã pode não haver (quem diz trabalho, diz rendimentos) - e que optou por criar riqueza por conta própria e não na dependência de terceiros. Da minha experiência de vida posso concluir que a fuga se verifica muito mais profundamente noutros profissionais que estão mais perto do que tradicionalmente se considera "mundo operário" do que da "liberalidade" real - canalizadores, electricistas, taxistas, carpinteiros - ou que fazem parte do também "simpático" pequeno comércio - restauradores, por exemplo. No entanto é aos licenciados que a carapuça se enfia e é a eles que se cola.
Não serão os profissionais liberais os grandes actores da desgraça. São antes as grandes empresas, bancos, seguradoras, grupos económicos - mas estas limitam-se a aproveitar as benesses da lei e os acordos efectuados na sombra dos gabinetes. E são também - e quanto a mim muito mais - todos os que se entretêm a desbaratar os recursos que ainda assim o Estado consegue angariar.
Muito mais do que um profissional a reduzir com artifícios a taxa a pagar pelo seu trabalho de muitas horas choca-me a calma com que um funcionário camarário cumpre o seu horário diário entre as 10-e-qualquer-coisa e as 4-e-pouco com intervalos pelo meio e pouca paciência para despachar o trabalho num tempo inferior ao estipulado muitos anos atrás no tempo das mangas de alpaca.

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