junho 03, 2004

A REABILITAÇÃO URBANA E LISBOA (VI)

Num país a sério (ou devo dizer, "num país sério"?) uma iniciativa como a do "Projecto Integrado do Chafariz de Dentro" (PICD), para além da enormíssima publicidade política que provocaria, constituir-se-ia obrigatoriamente como um "case-study" de análise profunda, servindo de referência não só a obras futuras como ao próprio futuro da política definida. Abrangendo uma área de Alfama contendo 63 edifícios e iniciado em 1995, o Projecto pretendia ser a referência da reabilitação urbana. Nove anos e uma identidade política diferente passados, encontram-se reabilitados 9 edifícios, 5 estão a meio da empreitada e, dos restantes, a maior parte entrará em obra brevemente já que se prevê próxima a conclusão dos concursos de empreitada. Nove anos é aparentemente muito tempo para tão poucos resultados.
O que falhou então?
Mais do que pessoas, falhou a entidade promotora e falhou o modelo.
Comecemos pelo modelo. O PICD surgiu como uma ideia política à qual se procurou apor, à posteriori, uma caução técnica Tendo a Direcção Municipal de Reabilitação Urbana (DMRU) sido, durante muitos anos, mais uma casa de arquitectos do que de engenheiros – ou seja, tendo desde o seu início mantido uma visão muito mais orientada para a manutenção e conservação dos espaços do que para a sua beneficiação e renovação – tal caução foi de alguma forma garantida pela experiência do passado quer no que respeitava a orçamentos previsíveis quer no que correspondia à fácil – ou , se quisermos, corriqueira – execução dos trabalhos. O PICD decorreria assim unicamente dependente da capacidade de trabalho de projectistas e de técnicos camarários e independentemente das características intrínsecas de cada edifício, do seu comportamento estrutural, da sua interacção com os edifícios vizinhos e da identidade de cada quarteirão. Resumindo: como vinha sendo tradição na prática da CML – e que o próprio modelo RECRIA confirmava -, dava-se primazia à recuperação arquitectónica, esquecendo-se a componente estrutural – principalmente a respeitante ao comportamento sísmico dos edifícios.
Teve a CML, no entanto, a fortuna ou infortuna de, na coordenação dos trabalhos e nas equipas projectistas escolhidas, técnicos que não se conformaram com operações cosméticas e que desde sempre defenderam intervenções profundas que garantissem a perenidade dos investimentos, nomeadamente no que à segurança sísmica diz respeito. Ora impor segurança em edifícios construídos apressadamente após o terremoto de 1755, sem qualidade de materiais e de soluções e sobre os quais caíram dois séculos de incúria tanto ao nível das intervenções quanto ao da sua conservação, significaria um tipo de intervenção tão aprofundado que teria de, forçosamente, pôr em causa, direitos proprietários, áreas de fogo, áreas construídas e a demolir, em suma, tudo para a qual a lei geral e a prática corrente se encontrava mal preparada. Como fazer obras coercivas em propriedade privada com ablação de áreas? Como integrar no modelo RECRIA (que apenas prevê obras de conservação) fundações novas? Como alterar o número de pisos ao abrigo do Plano de Urbanização de Alfama? Problemas e soluções que necessitaram de tempo. E que fizeram disparar custos.
Não acredito que existam números oficiais (pelo menos não preto no branco: será necessário fazer contas aos dados existentes) mas não tenho dúvidas que, nas intervenções mais aprofundadas, o preço da intervenção se aproxime dos 300 contos por metro quadrado.
Trezentos contos por metro quadrado.
Recorde-se que o valor oficial para construção nova comparticipada (por exemplo construção para os Planos especiais de realojamento) anda à volta dos setenta contos por metro quadrado (faça-se a conversão em euros para quem já consegue pensar em termos da nova moeda).
Ou seja, a reabilitação de edifícios vulgares de bairros históricos, bem feita, custa cerca de 4 vezes mais do que a construção nova. No mínimo, esta conclusão implicaria um debate urgente e aprofundado entre todos os intervenientes – políticos, técnicos camarários, projectistas, cidadãos – sobre as prioridades e limites da reabilitação urbana.
Mas, como é hábito, apenas se escuta um ensurdecedor silêncio.
Silêncio maior quando se assiste à reabilitação light do edifícios de um troço da Rua da Madalena e, pelos prazos anunciados e tipo de obras visto, se percebe que se andou 10 anos para trás no que concerne ao desrespeito pela segurança sísmica de pessoas e bens.

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