janeiro 27, 2005

CADERNO DE VIAGEM - PARIS (XI)

PONPON LACHAISE, LOCAL TURÍSTICO

Foi provavelmente o maior negócio urbanístico de todos os tempos. Comprar, por tuta e meia, um enorme terreno nos arredores de paris e depois vendê-lo em minúsculos lotes sem necessidades de grandes infra-estruturas, com uma velocíssima valorização do preço por metro quadrado não é para todos: é para quem tem ideias e as sabe pôr em prática.
O Pere Lachaise passou rapidamente de remoto local de enterramentos para glamorouso e podre de chic destino final de ricos, famosos e aspirantes a tal.

Já por inúmeras vezes declarei o meu fascínio por cemitérios. Não por especial morbidez, antes pelo que revelam da nossa complicada relação com ela e connosco próprios, com a insuportável distância entre a importância que nos damos e a que efectivamente temos no passar do tempo. Os cemitérios são os campos de batalha onde é mais encarniçada essa luta inglória contra o esquecimento que os grandes e poderosos travam no auge da vã glória do seu poder.

Depois de, há uns anos ter percorrido entusiasmado o cemitério de Montparnasse - e que me deu a conhecer inesperadamente uma das mais belas peças de Brancusi, um Beijo devotado colocado sobre uma campa russa já anónima



- tive agora o tempo para flanar pelo grande cemitério de Paris:


D'abord, a neve. Insuspeita de ter caído noutros pontos da cidade, aqui cobrindo os telhados num cartão postal alusivo à época do ano. Silêncio gelado, se esta imagem é perceptível para meridionais como nós. O gelo que estala seco sob os nossos pés. O zunido do frio nos ouvidos. Os quinhentos turistas calados que, de mapa na mão, peregrinam em busca da celebridade perdida.
Chamar-lhes-ia antes celebridades de celebridade perdida a quase todas.
Gente que, hoje, vale mais pela tumba que deixaram que pela vida que foram. Gente que se anulou com a morte para poder continuar a ser.
Deste jornalista, morto muito novo, nem sequer se pode reclamar o direito à preservação dos seus actos. Ironicamente, foram as circunstâncias da morte que o tornaram célebre - assassinado à queima-roupa por um irascível sobrinho-neto de Napoleão a quem tinha vindo pedir explicações políticas. Isso, e a fama de fertilizante que a sua estátua ganhou - veja-se o polido que as "partes baixas" apresentam, das incontáveis mãos que, ao longo de décadas, ao seu sortilégio recorreram para alcançar virtudes parideiras até aí ausentes.
Até o cendrário é uma construção cuidada. A minha filha impressionou-se com um desenho de criança preso a uma das "campas" mais recentes. "A maman de ses petits". Mamam morta nova demais, são assim as injustiças deste mundo.
"Aux armes citoyens!" parece o grito enérgico deste general sem medo que incita as massas à revolta perante a aproximação do inimigo que já ali vem. Eis uma prova de como a representação fotográfica da escultura falseia a sua tridimensionalidade e esconde muito do que nela se diz (e que poderia originar uma discussão interessante acerca da falsidade e subjectividade da representação de obras de arte, da redutora transmissão do que é uma obra arquitectónica e por aí fora - mas quem se interessaria por nela participar?)
Pois às armas, mas visto de longe, este general mais parece um quixote pateta e larilas, descendo atabalhoado um montículo de destroços. General de pacotilha, sem espada para lutar, alucinada imagem de um poder que não é. Se a arte tudo diz e se a arte não mente, quanto é verdadeiro da história oficial deste cavalheiro?
E, se para alguns, a sua história fica registada, outros há que, na modéstia da homenagem prestada, deixam mais curiosidade que explicações. Quem foi este Professor Amazit, em que guerras conquistou aquelas condecorações, que país exótico ("eternell Numidie/ C'est ici que j'ai passé/ Le meilleur de ma vie") o viu nascer e crescer? Que ligações do destino para um homem que perdeu o ano da sua morte?
De cidadão mais anónimos (pelo menos em termos internacionais) se faz também o presente:
Sinal dos tempos e da globalização, do triunfo de uma nova geração de emigrantes, da misceginação, ou apenas da minha imaginação. Ser enterrado no Pére Lachaise é, ainda, um sinal de ascensão social, a forma perfeita de se afirmar integrado. E aceite?

4 comentários:

Roberto Iza Valdés disse...
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Roberto Iza Valdés disse...
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Roberto Iza Valdés disse...
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Anónimo disse...
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