Querida M.,
Escrevo-lhe de cama, o portátil estrategicamente colocado do meu lado direito de modo a permitir que, com apenas um leve vestígio de movimento de braço, lhe consiga mandar notícias de mim. Valha ao menos o progresso para nos permitir manter a correspondência em dia já que, quanto à medicina, estamos conversados.
Seria de esperar que, após um ano de comprimidos ininterruptos anti-colesterol, o meu corpo tivesse ganho resistências mais ou menos sólidas a uma invasão pontual de gordurites excedentárias. Que soubesse mobilizar os necessários exércitos para as combater. E que me deixasse em paz na minha contemplação da vida enquanto fazia o que tinha de fazer.
Ora malditos comprimidos que apenas conseguem uma ilusória aparência de felicidade no cadastro limpo dos resultados das análises! Estou aqui que nem posso, depois de uma jantarada que meteu o meu patê favorito, duas garrafas de Chateauneuf du Pape, um pão alentejano e uma imensidão de azeitonas britadas...
Não diga, que eu já sei o que vai dizer. Mas há mais de dois anos que não fazia o petisco! Alguma vez experimentou a felicidade alquímica de transformar por acção do fogo uma massa de consistência e cheiro repugnantes num dos maiores prazeres que é dado ao palato saborear? Divagar criterioso entre ervas e especiarias, imaginando o subtil travo que dará um carácter especial à obra? E o orgulho da partilha? O orgulho da exposição? Ocasiões especiais requerem mimos especiais - como poderia resistir a esta provocação?
Pois, não resistimos. Nem eu nem o meu fígado.
E por isso lhe escrevo assim, mexendo só as pontas dos dedos e esperando arduamente que este vago tremor de musculos não se comunique ao irado vulcano lá de baixo para bem da relação respeitosa que com ele mantenho.
PS - Já sei que, com a sua resposta, virá a curiosidade. Vá procurando fornecedor de confiança para o fígado de porco e a banha. Descubra onde vendem pimenta verde fresca. O meu estado de letargia é tal que me poupo, por agora, de lhe descrever o método.
Seu,
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