abril 03, 2005

JP II

Passam pela enésima vez imagens de arquivo no canal que agora a minha televisão sintoniza. Perante as diversas imagens do Papa durante os anos do seu apostolado, o que me atingiu como uma revelação foi a imagem plena de morte que nós carregamos durante a vida: o nosso corpo é um mapa claro desse caminhar inevitável, lento e seguro, para a degradação dos tecidos, dos órgãos, dos sentidos, às vezes do espírito. E chocou-me a constatação de que estes últimos 26 anos aconteceram num ápice: em 78 acabava o liceu; em 82 emocionei-me contra vontade quando o vi passar no Saldanha (em 82 era um universitário apaixonado em vão por quem me não queria) e por essa altura ouvia à minha professora alemã falar do sonho impossível da reunificação; em 89, recém-casado, julgava-me um iluminado racional e a caminho de uma fulgurante carreira profissional; nos anos 90 achei uma traição a falta de um beijo na pátria timorense por quem (achava eu) coerente se devia manter (e à minha vida sobrepôs-se uma monotonia tão grande que não dei pela rápida passagem dos anos). E na sua última visita achei uma extrapolação de algum modo forçada a explicação do 3º segredo de Fátima com a sua experiência pessoal.
Nestes últimos anos, admirei a sua coragem, a lucidez que mantinha apesar da doença, ainda que me parecesse perigosamente no fio da navalha, numa ténue linha entre a coerência dos seus valores e a clarividência de continuar uma Real Politik que permitisse à Igreja Romana manter o estatuto de referência moral e política. Sempre difícil.
Agora morreu. Caminhou para o Paraíso segundo os cristãos, extinguiu-se fisicamente na perspectiva dos restantes ainda que tenha ganho o direito à imortalidade dos livros de História. E com a sua morte sinto que ficou para trás mais um bocadinho de mim.

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